Karim Jardim Advocacia

Blog

08/07/2020

A Lei dos Planos de Saúde existe, apesar do Judiciário

Lendo recente decisão proferida em processo que tramita no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, vimos que o magistrado julgou abusiva a negativa de determinado tratamento por certa operadora de plano de saúde, situação um tanto normal no dia a dia do judiciário.

A então condenada operadora alegou em sua defesa que não estava obrigada a custear o tratamento porque a lei a autoriza excluir da cobertura toda espécie de assistência de natureza experimental, além do item indicado não integrar o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e que constitui a referência obrigatória para as operadoras.

Ocorre que o Magistrado fundamentou sua decisão numa Súmula daquele Tribunal que afirma que “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS” (Súmula 102), fundamento que a nosso ver atinge frontalmente a legislação ordinária federal vigente no país, especialmente a “Lei dos Planos de Saúde” (lei 9.656/98), como pretendemos adiante analisar.

Antes, porém, para aqueles que não estão familiarizados com expressões jurídicas, convém esclarecer que o termo Súmula, do latim summula, nada mais é do que um resumo, uma síntese do entendimento predominante, ou seja, no caso, como aquele Tribunal tem interpretado e decidido sobre o tema.

Prosseguindo, é de causar perplexidade que um Tribunal possa pacificar entendimento e consequentemente orientar o julgamento de processos contrariando diretamente uma legislação ordinária, especial, promulgada legitimamente pelo Congresso Nacional.

A divisão de poderes está claramente expressa na Constituição da República, que no âmbito federal atribui ao Congresso Nacional, leia-se Câmara dos Deputados e Senado Federal, a competência para elaboração das leis, enquanto ao Poder Judiciário a interpretação e aplicação, não cabendo a este inovar, pois se assim o fizer certamente usurpará de sua função.

A lei 9.656/98, legislação ordinária federal, demonstra a toda evidência que existem exceções à obrigatoriedade de cobertura pelas operadoras (vide o art. 10).

Portanto, diferentemente dos fundamentos da decisão analisada, não vislumbramos razão para que o consumidor crie expectativa de que terá atendimento amplo e irrestrito ao contratar o plano de saúde, ressalvadas as promessas realizadas ou omissões do próprio contrato.

Entre as exceções contidas no mencionado art. 10, vemos que o legislador expressou de forma clara e objetiva que as operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a garantir tratamento clínico ou cirúrgico experimental (inc. I) e fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados (inc. II), como era o caso.

Nesse sentido, nota-se que a matéria analisada, por motivo óbvio, sequer exigiria esforço interpretativo, tamanha a objetividade do texto legal e compatibilidade com o caso.

Diz ainda, o texto, que a amplitude das coberturas será definida por normas editadas pela ANS (art. 10, §4º da lei 9.656) a teor do que dispõe o art. 4º, III da lei 9.961/2000, ou seja, há, também, expressa previsão legal autorizando a ANS a determinar a lista de exames e procedimentos cobertos, bem como as exclusões permitidas.

Aliás, não podemos deixar de mencionar, novamente, que a própria legislação ordinária permite a exclusão de determinadas coberturas.

Tanto é assim, que o legislador fez questão de mencionar que, dos contratos entre beneficiários e operadoras deve constar expressamente os eventos cobertos e excluídos (art. 16, VI), escrito que encontra compatibilidade com o Código de Defesa do Consumidor no seu art. 54, §4º.

Não bastasse, vemos que a ANS, seguindo o que determinou o legislador ordinário, publicou ato normativo dispondo sobre o Rol de coberturas, afirmando que o dito Rol constitui referência básica de garantias mínimas obrigatórias, o que significa dizer que as operadoras só se obrigam a garantir além dele se eventualmente prometerem.

Além disso, é possível verificar que a normativa da ANS, além de repetir o texto da legislação ordinária, cuidou de detalhar e esclarecer as exclusões permitidas, especialmente em relação ao tema ora discutido, sem inovar (art. 20, §1º da RN 428/2017).

Assim, não constando da lei em si a lista dos procedimentos e eventos em saúde cobertos, mas estando delegado a ANS publicá-lo, nos parece lógico que o multimencionado Rol integra a legislação ordinária, e seria, portanto, de observância obrigatória, inclusive pelo Poder Judiciário, sob pena de se extrapolar a competência de cada um dos poderes da União, além de provocar insegurança jurídica a toda sociedade.

Dessa forma, certa ou errada, justa ou injusta a legislação, mérito que não nos propusemos a discutir nesse texto, nos cabe, sim, questionar a legalidade da citada Súmula, pois só assim poderemos afirmar a validade das leis e convivermos com a tão almejada segurança jurídica.

Finalizamos, portanto, com a mesma convicção que iniciamos. A Lei dos Planos de Saúde existe, apesar do Judiciário.

 

Karim Rodrigues Jardim

Advogado especializado na área da saúde

OAB/BA 30.420

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